Ana Marta Meira*
A reflexão sobre a clínica psicanalítica com crianças
aponta para múltiplos eixos que se encontram em jogo no tratamento, entre
estes, questões referentes ao sintoma, à transferência e
à posição analítica diante da família.
Na conferência sobre o sintoma proferida em Genebra , Lacan refere-se
à análise de crianças a partir do caso Hans. Aponta para
a dependência da criança em relação aos pais e aos
significantes que a ela são outorgados ou não, salientando seu
lugar enquanto marcas primordiais. Refere-se à transitoriedade que se
encontra em jogo na infância, possibilitando à criança constituir
sua subjetividade a partir destes significantes ou de novos traços que
venha a encontrar.
Reportando-nos à análise da fobia do Pequeno Hans (1909), vemos
que Freud desvela fantasmas que se encontram em jogo no psiquismo da criança,
trabalhando sobre as observações minuciosamente registradas pelo
pai de Hans, que periodicamente leva o filho a seu consultório.
Hans, ao sair de um destes encontros, pergunta a seu pai: “O professor
fala com Deus para saber, assim, tudo o que vai acontecer?” Freud lhe
havia dito que “muito antes dele ter vindo ao mundo já sabia que
viria um menino chamado Hans, que iria
• Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS,
com a pesquisa A cultura do brincar – a infância contemporânea,
o brincar e a cultura no espaço da cidade, Professora substituta no Departamento
de Psicanálise e Psicopatologia/UFRGS, organizadora do livro Novos Sintomas,
Ed. Ágalma, Salvador.
querer muito a sua mãe, e por isto mesmo teria medo de seu pai.”
Fala ao menino a respeito de seus desejos edípicos, da estrutura simbólica
que perfaz seu sintoma fóbico, ao que Hans
responde, pela via transferencial, com a suposição de que Freud
fala com Deus, para saber sobre o que se passa com ele. Suposição
de saber que funda a neurose de transferência que se desenrola na análise.
Em relação às constantes interpelações que
o pai de Hans faz a respeito dos medos, desejos ou brincadeiras do menino, Freud
comenta que “o pai pergunta demasiado e investiga seguindo propósitos
que lhe são próprios, em vez de deixar que o pequeno se exponha.
Tudo isto tira transparência e segurança à análise.
Hans segue seu próprio caminho e não rende nada positivo quando
se quer apartá-lo dele.” (Freud, 1909, p.1397)
O pai de Hans revela, em suas constantes interrogações, que as
tentativas de compreender os sintomas de seu filho são muitas vezes infrutíferas.
Hans, por sua vez, comenta: “gosto muito de escrever ao professor. Me
diverte muito”. ( Freud, 1909, p.1392) Escreve a este que supõe
saber a respeito de sua angústia. O pai, como Freud comenta, invade a
fala de Hans com perguntas permeadas por suas próprias fantasias.
A este respeito, Freud aconselha aos que ainda não dirigiram por si mesmos
uma análise, que “não pretendam compreender tudo no ato
e vão acolhendo com certa atenção imparcial tudo o que
surja, em espera de sua definitiva aclaração.” ( Freud,
1909, p.1397) Revela que a direção do tratamento se realiza a
partir da colocação em cena da fantasia e das formações
do inconsciente singulares do analisando e que para que este caminho se construa
a atenção flutuante e a escuta do analista são determinantes.
Cabe refletirmos acerca do sintoma na clínica psicanalítica com
crianças. No trabalho Inibição, sintoma e angústia
(1925-26), Freud refere-se ao sintoma retomando a análise da fobia do
pequeno Hans. Neste escrito, considera o medo de ser mordido por cavalos que
irrompe em Hans um sintoma fóbico, sendo sua incapacidade de sair à
rua uma inibição. Mas não intervém diretamente sobre
o sintoma, considerando-o metáfora, traço subjetivo em construção.
Moustapha Safouan, no seminário Inibição, Sintoma e Angústia,
afirma: “... o que Freud diz sobre a neurose infantil, vale como uma verdade
universal. Não existe criança que não desenvolva uma fobia,
um ritual obssessivo, etc., (...) sem falar de questão de caráter,
de dificuldades escolares, e tudo o mais.”(1989, p.109)
Neste ponto encontramos a referência às neuroses transitórias
da infância, marcadas por sintomas constitutivos: o brincar, os terrores
noturnos, as pequenas fobias, as crises de birra, o negativismo, as mentiras.
Sintomas que representam tentativas de separação do desejo materno,
metáforas constituintes. Ou seja, no lugar do desejo materno, primordialmente
constitutivo, a criança passa a construir um lugar referido ao Nome do
pai. Lugar metafórico, próprio da neurose, por excelência.
Mas que não prescinde do pai da realidade, do pai real . Ou seja, em
sua análise, a escuta e a intervenção com a família
se faz necessária, pois a subjetividade infantil encontra-se, ainda,
dependente dos laços com seus pais.
Em Infância do sintoma, Charles Melman retoma as contribuições
de Freud e Lacan , analisando o sintoma a partir da referência à
neurose atual, portanto transitória, como constitutiva da subjetividade
da criança:
“(...)
Será que podemos sustentar que são realmente sintomas neuróticos,
ou será que devemos pensar no que se instituiria na relação
desses grandes Outros reais que constituem os pais, que se refeririam muito
mais a eles as marcas do que podemos chamar de uma neurose atual?
Não estariam esses sintomas deficitários essencialmente ligados
a uma neurose atual, ligada a esses Outros reais que são os pais, ainda
que, como suspeitamos, caberia pensar que a neurose atual se acha de certo modo
tecida ... com essa neurose original, essa neurose infantil constitutiva da
subjetividade da criança? (1997, p.19)
A criança, em análise, desvela seus sonhos, atos falhos, produções
sintomáticas, encontrando no analista o paradoxal lugar evocado por Mannoni,
de “um saber que não se sabe” . É desde este lugar
de suspensão de saber que se torna possível à criança
a colocação em cena da transferência e dos enlaces entre
desejo e demanda.
É a partir do tecido que se desdobra através das formas constitutivas
da infância - o brincar, as histórias, as cantigas, os desenhos,
os brinquedos, os livros, os jogos – que deslizam as associações
e formações do inconsciente, assim como a transferência,
motor da análise. Buscar compreender todos os atos e palavras da criança,
como aponta Freud, é apagar a possibilidade de que o processo analítico
ocorra e que a criança venha a assumir uma posição desejante.
É a partir dos tropeços próprios das trocas de palavras,
letras, nas interrupções e irrupções discursivas,
nos gestos e olhares, que o trabalho analítico se processa. O sintoma
da criança é traço que a marca, é fonte de simbolismos.
O brincar em análise é texto e escritura que se configura no “como
se” - via denegatória, subjetivante, que ao mesmo tempo coloca
em cena o sintoma da criança. Na articulação entre os sintomas
constitutivos próprios da infância e os sintomas clínicos,
a criança tece sua rede discursiva, brincando.
Ao analista, cabe a produção de atos, pontuações,
interpretações, silêncios, escuta, ali onde as formações
do inconsciente encontram-se presentes através das vias significantes
da repetição. Diferentemente da análise com adultos, o
analista dirige seu olhar à criança e a suas produções.
Justamente porque a criança encontra-se construindo os tecidos imaginários
que outorgam consistência ao eu e à imagem corporal partindo dos
tecidos simbólicos, ligados ao discurso e à linguagem. Esta tessitura
subjetiva se anola a partir da falta, real. Cabe considerar as diferentes posições
que a criança ocupa diante destes registros no momento em que se inicia
a análise, assim como sua posição diante do discurso dos
pais e familiares.
A criança, o analista e o sintoma social
O laço social na contemporaneidade apresenta diferenciações
em relação à época em que Freud produziu sua obra.
Há transformações em curso que vêm sendo analisadas
por vários autores. No artigo A criança é o pai do homem,
Anne Marie Hammad aponta para a transformação da família
na modernidade e a mudança da posição da criança
diante dos pais. O declínio da função paterna, tema já
exaustivamente desenvolvido, a fragilidade dos laços sociais, a primazia
do ter sobre o ser, promulgando o lugar do objeto como insígnia fálica,
são alguns dos traços que também se encontram na cena analítica.
Sob a forma de sintomas, falas, queixas, demandas, desejos, os ideais contemporâneos
são espelhos de formas de ser, fazem parte do discurso dos pais e da
criança.
Como trabalhar em meio a sintomas que são metáforas não
só da novela familiar, mas dos laços sociais, é um dos
desafios a que os analistas hoje estão confrontados em sua clínica
cotidiana. Em uma sociedade onde a medicalização é crescente,
produzindo a disseminação de psicofármacos, onde os sintomas
são considerados signos que formam transtornos ou síndromes controláveis
pela via da biopsiquiatria, o analista encontra-se muitas vezes convocado a
trabalhar sobre este apagamento do inconsciente que se opera no discurso social.
Nesta direção, desvelar no discurso da criança e dos pais
os sonhos, atos falhos, sintomas, desejos, histórias, é dar lugar
às formações do inconsciente, tornando possível,
através da transferência, a criação de novas posições
subjetivas. Posições que se perfazem pela via dos sintomas, aí
não medicalizados, não artificiais, mas marcados pelos processos
metafóricos e metonímicos que os constituem.
Para que uma criança tenha em sua análise a possibilidade de constituir
laços metafóricos, tecendo imaginariamente os registros do simbólico
e do real, é necessário que o analista possa ocupar o lugar de
semblante e ao mesmo tempo possa deixar-se levar pelas trajetórias que
esta cria em suas associações.
Falar, desenhar, brincar, movimentar-se, jogar, cantar, silenciar, em transferência,
desvela, ao mesmo tempo, os fantasmas ainda em construção na infância.
O sintoma é via metafórica e subjetivante, seja como formação
clínica ou estrutural. Na medida em que a angústia, motor de sua
criação, transborda, encontramos o sintoma psicopatológico,
frente ao qual a clínica se desvela como possibilidade de intervenção.
Não para erradicá-lo, mas para dar lugar às palavras que
o marcam.
Cabe ao sujeito construir os caminhos que o levarão a uma existência
onde estar em sintonia com seu sintoma seja uma via possível.
1
Conférence à Genève sur le symptôme – Conferência
pronunciada em 4 de outubro de 1975 no Centre Raymond-de-Saussure, em encontro
organizado pela Sociedade Suíça de Psicanálise.
2 Patrick de Neuter realiza interessante análise
sobre este tema no artigo O pai real e a sexualidade do filho. Em Neurose infantil
versus neurose da criança, Ed. Ágalma, Salvador, 1997.
3 No seminário Le sinthome (1975-1976), Lacan analisa
a obra de Joyce, considerando sua posição de escritor como sendo
um sinthoma, apresentando função de prótese. Lacan diferencia
o sinthoma - estruturante, constituinte, de symptôme, sintoma clínico.
Remetendo-nos ao exposto anteriormente sobre o caso Hans, vemos que a fobia
se constitui como um sintoma clínico.
* “... o sintoma da criança vem cobrir, no
discurso familiar, o vazio criado por uma verdade que não é dita.
Desta forma, o sintoma é necessário aos que têm que se proteger
contra o saber da verdade em questão. Ao querer tratar o sintoma, é
a criança que se rejeita.” (Mannoni, 1989, p.55)
Bibliografia:
Freud,
S. - Inibição, sintoma e Angústia, Obras Completas, Ed.
Biblioteca Nueva, Espanha, 1973.
Análise da Fobia de uma criança de quatro anos, Obras Completas,
Ed. Biblioteca Nueva, Espanha, 1973.
Hammad, Anne Marie - A criança é o pai do homem, em Novos Sintomas,
Ana Marta Meira (org.), Salvador, Ed. Ágalma, 2003.
Safouan, Moustapha - Inibição, sintoma e angústia - Ed.
Papirus, 1989.
Lacan, J. - El sinthoma, edição de circulação interna
da Escola Freudiana de Buenos Aires.
Conférence à Genève sur le symptôme, Centre Raymond-de-Saussure,
1975, Suíça.
Melman, Charles - Sobre a infância do sintoma, em Neurose infantil versus
neurose da criança, Org. Leda F. Bernardino, Col. Psicanálise
de Crianças, Ed. Ágalma, Salvador,1997.
Mannoni, Maud – Um saber que não se sabe – A experiência
analítica, Ed. Papirus, SP, 1989.